Há 40 anos não acaba a noite de 5 de julho de 1982 no estádio Sarriá
A segunda-feira, 5 de julho de 1982, amanheceu com tempo bom e sol. Era início de verão europeu, a temperatura subia em Barcelona. Havia clima de festa e expectativa por mais um show da seleção Brasileira, que encantava no “maior Mundial” da história; afinal, era a primeira vez, em décadas, que o torneio da Fifa saltava de 16 para 24 participantes. A rapaziada de Telê Santana havia despachado a Argentina por 3 a 1, na sexta-feira, e era favorita contra o azarão Itália.
Na época, eu trabalhava no “Estadão”, que me havia enviado para a Espanha um mês antes da abertura da competição. Estava todo animado, porque era minha primeira Copa, um marco na carreira. Como falo italiano e tinha muitos contatos com jornalistas de lá (eu também escrevia para o “Corriere Dello Sport”, de Roma), fui destacado para seguir a Squadra Azzurra, que tinha sido um fiasco na fase de grupos. Zoff, Tardelli, Rossi & Cia passaram raspando, depois de empates com Polônia, Peru e Camarões. Um time muito aquém do adversário que enfrentaria, a partir das 5 da tarde locais (meio-dia, de Brasília), no modesto Sarriá.
A turma do jornal decidiu ir cedo para o estádio, para iniciar logo os trabalhos. Por coincidência - ou ato-falho, sei lá -, coloquei uma camiseta polo azul escura, num tom parecido com a camisa da seleção italiana. Meu colega e amigo Gilson Menezes, um dos que acompanhavam os passos do Brasil, perguntou por que eu estava vestido daquela maneira. “Para dar sorte para os gringos”, respondi, em tom de gozação. O Gilson levou a sério, fechou a cara e não disse mais palavra.
As horas voaram, o ambiente no antigo campo do Espanyol era magnífico, o amarelo se destacava nas arquibancadas; nossa torcida era maior e mais barulhenta do que a da Itália. Havíamos invadido as avenidas e as ramblas da capital da Catalunha. As próximas etapas seriam a semifinal no Camp Nou, na quinta-feira, e a apoteose estava marcada para domingo, 11, no Santiago Bernabéu. Não tinha como dar zebra, a máquina verde-amarela estava azeitada, ajustada. Irretocável.
Por isso, não foi um grande choque quando Paolo Rossi fez 1 a 0, de cabeça, com apenas 5 minutos, numa bobeada da marcação e lançamento de Cabrini. Era certo que a reação viria - e veio 7 minutos depois, com o belo gol de empate de Sócrates. Ufa! Jogo bom, equilibrado, os danados dos italianos se soltavam como não haviam feito até então. Tanto que, aos 25 minutos, Cerezo erra passe no meio do campo, Rossi aproveita e arranca para marcar o segundo. A Azzurra transferia para o Brasil o peso do favoritismo, conforme previsão de Enzo Bearzot. Eu estava na entrevista do técnico, ao final da primeira parte da Copa, quando disse: “Vamos enfrentar os atuais campeões do mundo e os próximos campeões. Sabemos de nosso papel.”
O caldo engrossou, depois da nova vantagem rival. O segundo tempo ficou tenso, o relógio acelerava, a Itália se fechava. O cadeado foi rompido com um golaço de Falcão, aos 23 minutos. Numa das raras vezes e que me excedi em tribuna de imprensa, em 45 anos de profissão, dei um murro na mesa em que estava apoiada a máquina de escrever. (Sim, ainda se usava esse objeto antigo.) Que alívio!
O pesadelo voltou seis minutos mais tarde, com o terceiro de Paolo Rossi! Não era possível que fosse verdade… Os italianos viraram gigantes, fizeram até um quarto gol (na minha opinião mal anulado por Abraham Klein), mereceram vencer. E, para fechar a glória de um lado e o drama de outro, Zoff pegou bola em cima da linha, após cabeceio de Oscar, no último lance do jogo. O fotógrafo Alfredo Rizutti, do “Estadão”, fixou o lance, em que se vê a bola meio dentro do gol. Anos mais tarde, entreguei uma cópia para Zoff.
Assim que veio o apito final, a tristeza espalhou-se pela tribuna de imprensa onde estavam os brasileiros. Fiquei atônito, paralisado. Ao meu lado, Luis Carlos Ramos, então meu chefe na editoria de Esportes, advertiu. “Estamos todos tristes, mas amanhã o jornal sai.” Com isso, nos lembrava que nossa missão era a de contar a história. “Vá à merda, Luis!”, foi minha resposta. “Mas você tem toda razão.” Foi uma das maiores lições de jornalismo que aprendi. O repórter é testemunha dos fatos, não pode deixar envolver-se. Caso contrário, falha.
Fui para a sala de entrevistas dos treinadores. Quando Telê apareceu, a primeira pergunta, de um jornalista italiano, começou com um “Obrigado, senhor Santana, pelo futebol magnífico de sua seleção.” Após as declarações, Telê foi aplaudido de pé pela imprensa estrangeira; os brasileiros ficaram mudos. O pessoal de fora reconhecia, no calor da hora, a importância do trabalho dele. Não é por acaso que até hoje aquele time mexe com o imaginário de quem curte futebol.
Acabado o trabalho no Sarriá, fomos para o Camp Nou, onde estava nossa redação. Foi difícil escrever, teve colega que travou e eu terminei os textos dele. No começo da madrugada, fomos jantar. Não bebo, porém abri exceção e tomei vinho. Na volta para o hotel, topei com o Gilson, que disparou; “Ficou contente, seu filho da…?” Ele tinha mesmo levado ao pé da letra minha “torcida” pela Itália. E sumiu…
O sono não veio e, confesso, rolaram algumas lágrimas. Pela seleção, pelo fato de o nosso trabalho também murchar, pela distância de casa e pela saudade do meu filho mais velho, com apenas cinco meses e havia dois que eu não via.
Aquela noite parecia interminável. E foi mesmo: até hoje, 40 anos depois, o Sarriá já não existe, mas as cenas continuam muito vivas na minha memória. E na de milhões que assistiram ao jogo…
Apesar de tudo, faço um brinde à memória de Telê, de Valdir Perez, do doutor Sócrates, de Dirceu! Como disse o jornalista italiano: “Obrigado pelo futebol encantador.”
Há 40 anos não acaba a noite de 5 de julho de 1982 no estádio Sarriá
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