Pátria da defesa, da tática e dos vexames, a Itália sofreu a sua 'Tragédia do Sarriá' em Palermo
A Squadra Azzurra chocou o mundo ao perder nos acréscimos em casa para a Macedônia do Norte por 1 a 0 e ficar assim de fora da segunda Copa do Mundo seguida. Não preciso falar aqui da tradição da Itália no futebol, mas vou falar aqui que vexames dos mais diversos fazem parte sim da tradição do calcio, como é chamado o futebol pelos italianos. Nunca antes a Itália havia perdido uma partida em casa pelo qualificatório para o Mundial, começo por aí. Agora, são 48 vitórias, 11 empates e 1 derrota. Só Brasil e Espanha estão invictas agora em casa por eliminatórias.
Se pegarmos as grandes zebras da história do futebol,
impossível não citar a eliminação da Azzurra na Copa de 1966 diante da Coreia do
Norte. Torcedores revoltados com a derrota por 1 a 0, gol de Pak Doo-ik, atiraram
frutas no ônibus dos jogadores na volta da Itália para casa. Esse gol talvez
fosse o mais doído sofrido pela Itália até este chute de fora da área de
Trajkovski. Trágico gol que o gigante Donnarumma não conseguiu deter mesmo no
estádio Renzo Barbera, em Palermo, uma espécie de caldeirão italiano onde o
apoio à Azzurra é total e onde nunca a seleção da casa havia sido batida. O
temor de vaias e preferências clubísticas por parte de alguns torcedores de
cidades mais célebres do país, como Milão, ajudaram na escolha pelo alçapão de
Palermo. Mas nem esse fato casa salvou a Itália do vexame.
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Desde que foi tetracampeã mundial, em 2006, a
Azzurra fez feio nas Copas de 2010 e 2014, quando não passou da fase de grupos.
E fez pior ainda nas eliminatórias para os Mundiais de 2018 e 2022. Se para a
Copa da Rússia havia a desculpa de que a geração não era tão boa e que o
técnico Gian Piero Ventura cometeu algumas atrocidades, agora Roberto Mancini
vinha carregado de elogios e com o título da Eurocopa no ano passado,
promovendo o que seria o renascimento do futebol italiano, um jogo mais leve e
ofensivo, uma retomada em alto nível do país do catenaccio. A cara do calcio vinha
mesmo mudando com os emergentes times de Atalanta e Sassuolo, mas talvez isso
seja agora repensado diante do fracasso da seleção nas eliminatórias e a possível
saída de Mancini do cargo. Guardadas as devidas proporções, talvez a Itália experimente
agora o que o Brasil viu após a “Tragédia do Sarriá”, quando o futebol bonito de
Telê perdeu por 3 a 2 da Azzurra e despertou muito o resultadismo no “país do
futebol”.
O calcio de fato vive momentos de reflexão.
Desde 2010 nenhum clube italiano conquista um título continental. A última vez
foi com a Inter de Mourinho na Champions. E não vai ser fácil para Mourinho quebrar
esse tabu ganhando a Conference League com a Roma. Também não será moleza para
a Atalanta de Gasperini ganhar a Liga Europa, que tem o Barcelona como maior
favorito. Será que apenas a questão financeira pesa contra os times da Itália
nos torneios europeus? Outras ligas nacionais, sobretudo as de Inglaterra,
Espanha e Alemanha, cresceram em vários sentidos e tomaram o espaço que nos
anos 80 e 90 cabia bastante à Serie A italiana, na época o grande Eldorado do
futebol mundial.
A seleção italiana continua sendo quase que
totalmente uma equipe local, com a grande maioria dos atletas atuando no
próprio país. Dos convocados de Mancini para este fatídico playoff de repescagem,
só Donnarumma e Verratti (Paris Saint-Germain), Emerson Palmieri (Lyon) e Jorginho
(Chelsea) atuam no exterior. Aliás está aumentando cada vez mais o número de
jogadores nascidos no Brasil defendendo a Azzurra. O atacante João Pedro, do
Cagliari, estreou aos 30 anos exatamente nesse jogo trágico contra a Macedônia
do Norte. Os zagueiros Luiz Felipe, da Lazio, e Rafael Tolói, da Atalanta,
foram chamados por Mancini, embora o ex-são-paulino tenha ficado de fora da
última lista. Seriam jogadores realmente de alto nível para defender uma
seleção de ponta do futebol mundial? Acabaram servindo para a Itália porque o
Brasil não contava com eles e porque existe de fato uma crise técnica no
calcio. Não há craques na Azzurra!
Historicamente, a seleção italiana aproveita
bastante os chamados “oriundi”, jogadores nascidos em outros países. Vittorio Pozzo
brigou bastante para importar na década de 30 vários jogadores sul-americanos,
como Luis Monti, Michele Andreolo, Attilio Demaría, Raimundo Orsi, Enrique Guaita
e Anfilogino Guarisi (Filó). A Itália ganhou duas edições da Copa do Mundo e
uma medalha de ouro olímpica com força estrangeira e sob a marca do fascismo. Pozzo
foi um grande técnico e líder, porém deixou o futebol após a Segunda Guerra por
conta de sua ligação com o regime de Mussolini. Na Copa de 1938, o treinador
perfilava com os atletas da seleção italiana fazendo inclusive saudação
fascista. Essa tradição de buscar jogadores no exterior continuou em 1982 com Gentile
e em 2006 com Camoranesi e Perrotta.
Isso significa dizer que a Itália sempre foi
campeã mundial com pelo menos um jogador que não nasceu em território italiano.
Mesmo antes da globalização, essa política italiana despertava para a
dificuldade do país de produzir craques em grande quantidade. Sempre foi
preciso apelar para um Schiaffino, um Mazzola, um Ghiggia, um Sívori, um Di
Matteo, um Dino da Costa, um Maschio ou mesmo um Giuseppe Rossi. Mesmo assim, a
Itália ficou fora da Copa do Mundo de 1958, muito antes dos fiascos recentes em
eliminatórias. Outra polêmica do calcio diz respeito à manipulação de
resultados, algo que respingou até nas duas últimas conquista de Copa do país:
em 1982 e em 2006.
A Itália continua exportando muitos
treinadores, especialmente por conta dos fortes sistemas defensivos dos
italianos, mas outras nações, como Alemanha, Espanha e Portugal, estão roubando
do calcio essa primazia de ter os mais respeitados estrategistas do planeta. O
sucesso do próprio Mourinho na Itália exemplifica essa mudança, o português é
mais amado que muitos dos treinadores locais. Os estádios na Itália, de uma
forma geral, também são obsoletos. Não é à toa que a Juventus, com arena nova,
construiu recentemente sua maior hegemonia nacional. E que Inter e Milan definem
os detalhes para o novo e moderno estádio de Milão. Tudo faz parte do plano da
Itália de ser a sede da Eurocopa em 2028 ou em 2032. E tentar receber outra Copa
mais à frente.
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Eu sei que o momento é de buscar explicações
pontuais para mais um vexame histórico da Itália, como a lesão de Chiesa, a
queda de produção de Donnarumma, o pênalti perdido de Jorginho ou a idade
avançada de Chiellini, só que os problemas do calcio são muito mais amplos. O
processo de renovação do futebol italiano passa por vários fatores. A campanha
mágica na Eurocopa do ano passado pode ter ofuscado alguns dos pontos fracos do
calcio dentro e fora de campo. Agora, eles deverá ser mais debatidos.
O genial Cruyff disse certa vez que a Itália nunca
poderia vencer a Holanda, mas que a Holanda poderia perder da Itália. A lógica
dele é que os italianos costumam deixar a bola para o adversário, sobretudo
para algumas seleções mais técnicas, e apostar nos rápidos contra-ataques. Só
que a Macedônia do Norte teve apenas 34% de posse de bola e deu só quatro
finalizações, duas certas. Parafraseando Cruyff, a Macedônia do Norte não podia
vencer a Itália, mas a Itália podia perder da Macedônia do Norte.
Pátria da defesa, da tática e dos vexames, a Itália sofreu a sua 'Tragédia do Sarriá' em Palermo
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