No país em que quase ninguém acredita nas instituições e nas pessoas, todo campeonato acaba 'manchado'
Já reparou que, mesmo na era dos pontos corridos, quando em tese o campeão é mesmo o time que mais mereceu e que o resultado reflete mais claramente a força dos clubes, quase todo campeonato no Brasil é "manchado"? Não importa quem esteja na liderança ou brigando por posições nobres, invariavelmente vai aparecer um dirigente, um técnico, um auxiliar, um jogador ou alguém na imprensa ou em mídias sociais para insinuar que há um esquema para favorecer uma determinada equipe, seja porque tem muito dinheiro envolvido, porque é do Eixo, porque tem boa relação com dirigentes ou porque não se pode ganhar muitos campeonatos de forma seguida, como falou João Martins, auxiliar de Abel Ferreira, após o duro empate de 2 a 2 contra o Athletico-PR.
O ótimo treinador português parece ter
entendido bem a cultura do futebol brasileiro e já "manchou" campeonato que ele
mesmo veio a vencer. "Façam o que quiser. O Campeonato Paulista está manchado.
Eu não sou árbitro, mas, pelas regras que eu leio, o VAR só deve interferir em decisões
muito flagrantes, infelizmente ele (juiz) não teve coragem de seguir em sua
decisão", reclamou Abel Ferreira após perder por 3 a 1 para o São Paulo na
partida de ida das finais do Paulista de 2022. No jogo da volta, o Palmeiras venceu no Allianz Parque o rival por 4 a 0, e o campeonato que estava "inquinado",
segundo Abel, passou a ser legítimo e justo.
A comissão técnica palmeirense não está
sozinha nas críticas à arbitragem e à CBF, insinuando que há uma orquestração
no campeonato para prejudicar determinado time e até jogador, no caso o Hulk.
Luiz Felipe Scolari, o experiente Felipão que trabalhou duas vezes como técnico
da seleção brasileira, chegou a dizer que há "ordem lá de dentro" para dar cartões
para o forte astro atleticano. O atacante, que tem reclamando constantemente das
arbitragens desde que voltou ao Brasil, já teve confusão com o juiz Anderson
Daronco e, agora, foi protagonista na treta com o Wilton Pereira Sampaio, reclamando, ofendendo e aplaudindo de forma irônica o árbitro do 2 a 2 contra o América-MG (assim como no 2 a 2 do Palmeiras, o time que abriu 2 a 0 no placar e que
depois cedeu o empate ficou pistola com a arbitragem).
Hulk foi campeão brasileiro com o Galo de
forma histórica, acabando com o jejum de 50 anos sem título do clube mineiro no
principal campeonato nacional, em 2021. Mas teve gente naquele ano, sobretudo
dirigentes flamenguistas, como Paulo Cesar Pereira, vendo um favorecimento para
o Atlético. Após o título do Galo, o dirigente em questão postou uma foto da
taça do Campeonato Brasileiro com a mensagem "VAR", alusão à tecnologia que
teria ajudado o Galo a ter mais de dez pênaltis a seu favor naquele campeonato.
Hulk, claro, não reclamou do árbitro na marcação de nenhuma dessas penalidades
máximas.
Felipão, assim como o Abel Ferreira e outros tantos técnicos mundo afora (José Mourinho reclama muito e é um mestre nos "jogos da mente"), ataca a arbitragem sistematicamente. Além de desviar o foco dos problemas de seu time, fazendo isso nasce uma esperança de uma ajuda nos próximos jogos. E cria-se ainda uma narrativa de que estamos jogando “contra tudo e contra todos", o que casa bem para muitos torcedores, especialmente no Brasil, onde quase ninguém acredita em instituição nenhuma, em que há uma cultura de corrupção, de sacanagem, de malandragem etc. O atleticano historicamente se sente prejudicado pela CBF e pelas arbitragens, trauma que vem de confrontos decisivos contra o Flamengo nos anos 80. O Palmeiras, em menor grau, também já apontou favorecimento algumas vezes para os dois times mais populares do país: Flamengo e Corinthians. Muito por isso o palmeirense tende a abraçar a tese de que há um “sistema” contra o clube, que passaria pelas federações e também pela imprensa.
Se você pegar a história do futebol brasileiro, constatará que muitas teorias da conspiração surgiram. Felipão, campeão mundial em 2002 com a seleção, certamente já ouviu aquela bobagem de que o Brasil perdeu a final para a França em 1998 em um acordo comercial e político que garantiria o penta quatro anos depois. Felipão também já ouviu falar nos anos 90 do "Esquema Parmalat", que usaria a dinheirama da parceira palmeirense para abocanhar vários títulos a partir de 1993. Felipão foi adversário feroz do Palmeiras na metade dos anos 90 e depois virou um treinador do clube alviverde na reta final da Parmalat no time. Aliás morreu recentemente José Aparecido de Oliveira, árbitro que ficou marcado por muito tempo por conta da final do Paulista de 1993, sendo acusado por corintianos de ter feito parte do tal "Esquema Parmalat" (o mesmo José Aparecido de Oliveira ajudou o Corinthians a ir para a final daquele Estadual ao validar gol impedido de Neto contra o São Paulo de Telê nas semifinais).
O São Paulo, quando era o soberano do futebol
brasileiro, conquistou seu tricampeonato nacional genuíno em meio a acusações
de que teria aliciado árbitro oferecendo ingressos para show da Madonna no
Morumbi. A CBF apontou tentativa de suborno ao árbitro Wagner Tardelli na reta
final do Brasileiro de 2008, quando o Tricolor faturou seu hexa. Tardelli, que
apitaria o jogo derradeiro do São Paulo naquele campeonato, seria um dos
destinatários de ingressos para ver a Madonna. Dirigentes são-paulinos
ironizaram a acusação vinda da CBF, alegando que Tardelli prejudicava o clube
do Morumbi várias vezes. "O curioso disso tudo é que nesta semana nós enviamos à
CBF uma carta lembrando várias atuações desastrosas deste juiz contra o São
Paulo", afirmou João Paulo de Jesus Lopes, então diretor tricolor. Mais
recentemente, quando o São Paulo de Fernando Diniz liderava o Brasileiro de
2020, havia gente insinuando que existia um favorecimento ao Tricolor porque o
então presidente da CBF, Rogério Caboclo, era são-paulino, filho de cartola
tricolor.
A tal "força nos bastidores" parece acompanhar
sempre o futebol brasileiro. Um jogo fora de campo é travado para que se possa
ter alguma vantagem futura ou para que não haja pelo menos um prejuízo.
Cartolas da antiga foram criados dessa forma, essa prática de causar e bradar
contra o sistema é mais velho do que o próprio futebol. Mas vemos ainda nesta
era moderna de SAF's e executivos renumerados reclamações e insinuações "old school".
Rodrigo Caetano, um dos mais respeitados diretores remunerados do mercado, foi citado
na súmula de Atlético 2 x 2 América por protestar contra o árbitro: "Já sabia
que você ia fazer isso! Você não é homem", teria dito Caetano a Wilton Pereira
Sampaio.
Volte no tempo e veja o que os cruzeirenses
falam sobre favorecimento ao Vasco na decisão de 1974, o que os santistas dizem
da atuação de Márcio Rezende de Freitas contra o Botafogo na final de 1995 ou o
que os colorados pensam do mesmo Márcio Rezende na partida decisiva contra o
Corinthians no Pacaembu em 2005. Nesse ano, houve sim um esquema, uma máfia do
apito tendo como protagonista o ex-juiz Edilson Pereira de Carvalho. Jogos dele
foram anulados, o que depois acabou favorecendo o campeão Corinthians, na época
parceiro da nebulosa MSI. O Corinthians já conseguiu jogar o Mundial de Clubes de 2000 muito por conta de sua parceria com a Traffic, que ajudou a organizar o
primeiro Mundial da Fifa no Brasil. Motivado muito pelo título mundial corintiano,
o Palmeiras fez um dossiê para tentar ser proclamado campeão mundial de 1951. E
depois outro dossiê, elaborado por um santista, seria levado à CBF para
unificar os títulos nacionais, equiparando inclusive uma copa curta (Taça
Brasil) com o Campeonato Brasileiro. Por uma questão política, Ricardo
Teixeira, então presidente da CBF, aprovou a unificação. E tentou fazer o Flamengo
ser proclamado também campeão brasileiro de 1987, o que a Justiça logo vetou.
São décadas e décadas de polêmicas. O futebol
brasileiro não é para os fracos. Alguém sempre vai dizer que Eurico Miranda fez
o Vasco ser campeão brasileiro em 2000 driblando a tragédia contra o São Caetano em São Januário, que o Fluminense ganhou dois Brasileiros devido a um "Esquema
Unimed", que o Cruzeiro ganhou suas duas últimas Copas do Brasil montando time
que não tinha direito para pagar, que o Internacional só foi campeão invicto em
1979 porque muitos times grandes ficaram de fora daquele campeonato bagunçado,
que o Santos quase ganha o Brasileiro de 1983 sendo que nem deveria ter jogado
aquela disputa por conta de sua campanha ridícula no Estadual, que o
Flamengo de Zico só ganhou muito por causa da TV Globo etc.
Se os brasileiros tendem a não acreditar mesmo
nas pessoas, nos políticos e nas instituições, por que iriam confiar em
dirigentes e em árbitros de futebol? Ainda mais com cartolas clubistas que só conseguem
olhar para o próprio umbigo e não são capazes de montar uma liga independente.
Ainda mais com juízes mal preparados e que ainda não são oficialmente profissionais.
Não tem VAR nem tecnologia nenhuma que vá mudar essa cultura do futebol
brasileiro de desconfiar de cada campeonato, ainda mais com o aumento das casas
de apostas e com um escândalo de manipulação de resultados chegando à Série A.
O Campeonato Brasileiro de campeonato mais manchado continua firme e forte!
No país em que quase ninguém acredita nas instituições e nas pessoas, todo campeonato acaba 'manchado'
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